VOCÊ SABIA
Ao entrarmos na sala, parece que interrompemos uma reunião de velhos amigos. Ou que estamos vendo homens sendo homenageados, não sabemos exatamente pelo quê. Nas paredes só rostos, flutuando como fantasmas na superfície do papel, com os olhos na altura dos olhos de quem os vê. Ao mesmo tempo em que são observados, parecem olhar de volta, como se estivéssemos diante de estranhos espelhos. Os títulos das obras trazem apenas o primeiro nome de cada retratado, o que aumenta o nosso incômodo. A referência íntima indica que deveríamos saber quem são eles. De onde conhecemos Artur, Emílio, Ernesto, Humberto e João?
Na série Esqueça de mim (2021), Marcelo Albagli realiza desenhos que retratam os militares que atuaram como presidentes do Brasil entre os anos 1964 e 1985. São resultado do mergulho realizado por ele em sua memória. Lembranças de uma outra época, ao mesmo tempo muito distante e muito próxima de agora. Nesta exposição, também intitulada Esqueça de mim, o artista reuniu um amplo conjunto de trabalhos, todos em desenho, partindo de retratos de personalidades e políticos brasileiros que tiveram presença fundamental na nossa história entre os anos 1960 e 1980. São desenhos que literalmente dão rosto às lembranças de Marcelo, reconstruídas a partir de fotografias, uma vez que suas memórias de infância desse período não o permitiam lembrar claramente dessas feições. Uma memória ao mesmo tempo individual e coletiva, afetiva e nacional.
Nessas obras, o desenho é bem mais do que uma técnica ou um meio. É um método de trabalho. Algo que poderia ser entendido como desenho de observação, não tanto no que diz respeito a uma reprodução ou reconstrução do que se vê ou do que se lembra, mas especialmente no que se refere a um estado de percepção atento. Muitas vezes não é sobre o que vemos, e sim sobre o que podemos ver a partir dali. Paul Valéry começa o ensaio “Ver e traçar”, publicado em Degas Dança Desenho (Cosac Naify, 2003), afirmando: “Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a. Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais familiar aos nossos olhos torna-se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo”. É como se o processo de desenhar fosse um caminho para descondicionar a percepção das coisas, e no caso das obras de Marcelo, descondicionar nossa percepção da história, a partir de um olho desconfiado, que pergunta, que busca detalhes, que tenta desconstruir estruturas, decompor imagens prontas.
Mas aqui, desenho não se constrói só com os olhos e as mãos, em suas dimensões mais objetivas. Há uma forte e importante dimensão sensorial no entendimento da ideia e da prática do desenho. É como a diferença que aponta o Manifesto Neoconcreto (1959), também em conversa com Paul Valéry, entre o olho-máquina e o olho-corpo. O desenho-corpo de Albagli começa já na materialidade do suporte. Realizados sobre papel do século 19, constantemente garimpado em sebos e leilões, trazem consigo marcas que são incorporadas pelo artista. Textura, volume, peso, cheiro e marcas do tempo, como mofo, manchas e amarelados, ou mesmo pequenas anotações, são parte constitutivas da imagem final. São como se fossem os corpos que faltam para os rostos que vemos. Como se dessem algum lastro de vida a eles. Como desdobramento quase obrigatório, desenho aqui é também a provocação do olfato, tato, visão, paladar e audição do outro.
Na série Brasília 19 horas (2021-2022), por exemplo, nossa memória sonora é provocada pelo título. A voz masculina que diz “Em Brasília, 19 horas”, seguida dos acordes da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, seu tema de abertura, tornou-se a marca registrada do início de cada programa d’A Voz do Brasil – noticiário radiofônico produzido pela Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), com veiculação obrigatória. Em uma hora de programação, leva ao público conteúdo oficial sobre a atuação dos três poderes da república brasileira, configurando-se como fonte de informações sobre o país, a partir da “voz” do Estado. A provocação sonora do título é parte da construção dos 15 desenhos que compõem essa série: retratos de personagens que marcaram o noticiário no período da Ditadura Militar, e que foram signatários do AI-5.
Já em Hora certa (2022), a obra é o som, que de maneira instalativa toma conta de toda a sala e serve de matéria-prima para construção de imagens mentais. Em intervalos regulares, o público da exposição ouve pequenas pílulas de conteúdo da antiga Rádio Relógio. Fundada em 1956, transmitia notícias curtas e curiosidades sobre a vida dos animais, o corpo humano, hábitos em outros países, além de dicas de saúde e bem-estar, ao mesmo tempo em que informava as horas. O locutor sempre encerrava o texto com o bordão “Você sabia?”. Depois de meses de pesquisa e buscas por esse acervo sonoro, recorrendo a arquivos e fontes de consulta, tudo o que foi possível encontrar são os 9 minutos e 48 segundos que ouvimos nas 30 pílulas sonoras veiculadas na exposição. Tudo leva a crer que não sobrou mais nada desse material.
No começo deste projeto, imaginava esta exposição como uma espécie de processo de escavação de memórias. Hoje acredito que a melhor imagem para ela é como um intenso cabo de guerra. Se antes entendia o título Esqueça de mim como um pedido ou quase uma inevitabilidade quando se pensa em Brasil, agora, com as obras ocupando o espaço, tenho certeza que esse é um título-armadilha. Importante dizer que nele Marcelo Albagli faz referência a uma das últimas entrevistas do então presidente João Figueiredo, concedida antes do fim da ditadura militar no Brasil, em 1985. “Peço ao povo que me esqueça”, disse o último general a presidir o país. Foi ele quem, em setembro de 1979, a menina Rachel Clemens se recusou a cumprimentar, gerando uma das imagens que se tornou símbolo da luta contra as barbáries e censuras cometidas pelo governo brasileiro durante o período da ditadura. Esquecer ou ignorar a história é deixar que ela se repita. Hoje não, João.
Fernanda Lopes
Curadora
ESQUEÇA DE MIM
Galeria Z42, Rio de Janeiro
19 de novembro a 24 de dezembro 2022